Portes Grátis
Pré-lançamento - disponível para envio a partir de 17-10-2011
15,75€
Sinopse
A ação do romance localiza-se em Lisboa em meados do século
XX. Num prédio existente numa zona popular não identificada de Lisboa vivem seis
famílias: um sapateiro com a respetiva mulher e um caixeiro-viajante casado com
uma galega e o respetivo filho – nos dois apartamentos do rés do chão; um
empregado da tipografia de um jornal e a respetiva mulher e uma “mulher por
conta” no 1º andar; uma família de quatro mulheres (duas irmãs e as duas filhas
de uma delas) e, em frente, no 2º andar, um empregado de escritório a mulher e a
respetiva filha no início da idade adulta.
O romance começa com uma
conversa matinal entre o sapateiro do rés do chão, Silvestre, e a mulher,
Mariana, sobre se lhes seria conveniente e útil alugar um quarto que têm livre
para daí obter algum rendimento. A conversa decorre, o dia vai nascendo, a vida
no prédio recomeça e o romance avança revelando ao leitor as vidas daquelas seis
famílias da pequena burguesia lisboeta: os seus dramas pessoais e familiares, a
estreiteza das suas vidas, as suas frustrações e pequenas misérias, materiais e
morais.
O quarto do sapateiro acaba alugado a Abel Nogueira, personagem
para o qual Saramago transpõe o seu debate – debate que 30 anos depois viria a
ser o tema central do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis – com
Fernando Pessoa: Podemos manter-nos alheios ao mundo que nos rodeia? Não teremos
o dever de intervir no mundo porque somos dele parte integrante?
Excerto
«Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o
sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que
transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas
percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes,
bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um
movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente
as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram
e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas
revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício
de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pela das palmas tão espessa
que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.
Num movimento
mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as
rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos
entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco,
sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam
pertencer-lhe.
Contemplando com desalento os pés descalços assentes no
tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto,
apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no
quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como
andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados e sal-e-pimenta, o
nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam.
Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da
porta, gritou:
- Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças?
(Voz
de dentro:)
- Já lá vai!
Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana
era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve de esperar um bom
pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
- Estão aqui.
Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as
pernas de Silvestre. E acrescentou:
- Não sei que fazes aos botões das
calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho de passar a
pregá-los com arame…
A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona.»